23 Fevereiro 2023
“Talvez estejamos em um momento que nem a esquerda e nem a direita compreendem, nem aceitam, o do capitalismo realmente existente, e assistamos um novo tipo de indignação, diferente da de 2011, quando estouraram os ‘indignados’”, escreve Pablo Stefanoni, jornalista e historiador, em artigo publicado por Nueva Sociedad, Fevereiro/2023. A tradução é do Cepat.
Nos últimos anos, testemunhamos uma “grande desordem sob o céu”, como supõe-se que, certa vez, disse Mao Tsé-Tung. E por isso, segundo o líder comunista chinês, a situação era “excelente” e os tempos “interessantes”. E se for por desordem, os nossos devem ser, com efeito, muito interessantes. Hoje, assistimos a um peculiar choque de trens nas percepções sobre quem “controla” o mundo.
Para o progressismo, a extrema-direita é o novo fantasma que percorre o planeta: uma “direita antidireitos” freia os avanços em direitos civis (sobretudo para mulheres e grupos LGBTI). As imagens de diferentes grupos ultras circulam nas redes sociais, pede-se penas maiores, inclusive legais, para os “discursos de ódio”, presume-se que a direita tem muito mais capacidade de comunicação do que a esquerda….
Enquanto isso, para as novas direitas radicais, é o progressismo que estaria com a faca e o queijo na mão e controlaria governos, meios de comunicação, universidades, organismos multilaterais e até grandes empresas. Desses espaços, teria se levantado uma nova matriz, uma ditadura do politicamente correto e o domínio de novas elites progressistas (woke) contra a maioria das pessoas comuns.
Neste marco, um influencer de direita “sem complexos” como o argentino Agustín Laje, com grande prestígio na América Latina, consegue escrever um livro com aspirações a se tornar um best-seller, intitulado Generación idiota: Una crítica al adolescentrismo, e apresentá-lo em vários países da região e nos Estados Unidos como um livro de resistência à hegemonia progressista.
E, sem dúvida, esse sentimento de que é o “inimigo” que controla corações e mentes, gera fortes doses de perturbação em diferentes espaços político-ideológicos. Uma espécie de política ancorada em um jogo de espelhos no qual, muitas vezes, combate-se muito mais “homens de palha” do que forças políticas reais, o que fragiliza enormemente o debate político racional e acaba construindo realidades paralelas, “alternativas”.
O caso latino-americano não escapa dessa situação. Assim, enquanto as esquerdas mostram grande capacidade em vencer as eleições, mas menos em dar forma a seus projetos, e enfrentam dificuldades de todos os tipos que ameaçam desmoralizar parte de seus seguidores, o deputado paleolibertário argentino Javier Milei e o ex-presidente do Brasil Jair Messias Bolsonaro falaram, nesses dias, de uma estratégia comum para enfrentar a esquerda e uma “União Soviética Latino-Americana” em maturação, impulsionada pelo... Grupo de Puebla (um espaço com muito pouca incidência real).
Na esquerda, às vezes, o campo inimigo também é superdimensionado. Assim, costuma-se inflar a influência de iniciativas como a da Iberosfera ou a Carta de Madri, promovidas pelo Vox, como se essas redes bastante informais realmente incidissem nas capacidades locais das extremas-direitas. Muitas vezes, ocorre o contrário: Milei é convidado para encontros do Vox porque o economista libertário já conquistou alguns êxitos políticos prévios e procuram exibi-lo ao seu público para ilustrar os avanços globais nas lutas “antiglobalistas” e antiprogressistas.
Na esquerda, rimos com razão do novo anticomunismo zumbi da direita. Contudo, até que ponto nosso antifascismo também não é? Especificando melhor: não é que os avanços das extremas-direitas não sejam preocupantes (de fato, escrevi um livro sobre rebeldias de direitas, tema que me parece central no mundo em que vivemos), mas, de fato, agimos como se o fascismo fosse um perigo a curto ou médio prazo? Dito de forma mais direta, acreditamos em nossos próprios discursos sobre a “ameaça fascista”? Existe algo de zumbi no antifascismo, na medida em que estamos diante do desafio de uma extrema-direita que não é o fascismo e os slogans antifascistas têm um efeito limitado (embora não nulo).
A dinâmica de tensionamento do sistema democrático-liberal, por parte dessas forças reacionárias, convive com sua própria adaptação a ele, somado ao fato de que a União Europeia, por boas e más razões, impede que elas avancem em programas maximalistas. Mas também existem limites nas próprias sociedades, que muitas vezes não expressam processos de radicalização fascistizantes como se poderia derivar da aritmética do voto na extrema-direita (por exemplo, na França, onde o partido de Marine Le Pen obteve mais de 40%, no segundo turno das eleições presidenciais, e passou de 8 para 89 deputados, nas últimas eleições, ou na Itália, onde a pós-fascista Georgia Meloni se tornou primeira-ministra, não se vê um processo de radicalização social de direita, até mesmo na Polônia o governo ultraconservador tem problemas para avançar em sua contrarrevolução cultural).
Sendo assim, o que vemos é uma guerra de guerrilhas ideológica e cultural de tipo reacionária com a União Europeia (já sem delinear abertamente o “exit”), juntamente com regressões institucionais “iliberais” na Europa central e oriental, e discursos exasperados de direita por todos os lados, muitas vezes, com superatuações de direitas liberal-conservadoras tradicionais (macristas, na Argentina, Partido Popular, na Espanha, etc.) para não ficar atrás.
Alguns dos efeitos da expansão das extremas-direitas já são dados como certos, independentemente de quem governe. Por exemplo, na França, a teoria complotista da “grande substituição - do povo e a civilização da França por não brancos – já faz parte do discurso público, bem como as condenações ao suposto “islamoesquerdismo” e a histeria acerca do “separatismo islâmico”, além de diversas derivações da imagem do “suicídio francês” aventadas por ideólogos como Éric Zemmour. O próprio Governo de Macron pegou algumas dessas bandeiras e o ministro do Interior chegou a acusar Le Pen de ser “muito branda” acerca do Islã.
A extrema-direita, por sua vez, insiste em que o progressismo controla o mundo. Aí está a ex-deputada Rosa Díez organizando “a resistência” das catacumbas do programa do jornalista Federico Jiménez Losantos, onde não rebaixam o governo de Pedro Sánchez como “social-comunista” e inclusive bolivariano. Na França, há uma verdadeira obsessão com a cultura woke, termo estadunidense relacionado à consciência sobre as injustiças raciais e sociais, claramente importado sem o seu contexto.
E não se trata apenas da cultura. A esquerda também já estaria controlando as grandes empresas, as únicas instituições “não esquerdistas” que restavam. “As grandes empresas não são mais nossas aliadas”, disse o senador Marco Rubio, em uma recente convenção dos nacional-conservadores estadunidenses. Sobretudo, referia-se ao apoio, pelo menos formal, de muitas grandes corporações ao movimento Black Lives Matter (vidas negras importam), bem como aos protestos dessas empresas contra a manipulação dos distritos eleitorais e a discriminação dos eleitores negros em estados governados pelos republicanos.
Até as petroleiras já estariam cooptadas pela cultura radical. “Evidências” à la carte: a Shell Oil patrocinou uma palestra, em Houston, sobre a experiência afro-americana da jornalista negra Nikole Hannah-Jones, autora e promotora do polêmico Projeto 1619, uma empresa historiográfica e jornalística que convida a reconhecer a centralidade da escravidão e do racismo na história dos Estados Unidos.
Até a emblemática Halliburton organiza palestras de diretores-gerais sobre diversidade, respeito e igualdade, neste caso, sob a responsabilidade de Michelle Silverthorn. “O que você acha: as ideias de justiça social da esquerda radical são agora abraçadas e fomentadas nos mais altos níveis diretivos da Halliburton, a empresa que Dick Cheney costumava dirigir! O capitalismo woke triunfou”, escreveu o colunista Rod Dreher, em seu blog The American Conservative, que recebeu um e-mail de um empregado que “não se atrevia” a denunciar o fato abertamente por medo de represálias.
Esses ativistas/consultores “não incomodam os poderosos, como acreditam, mas abrandam sua culpabilidade liberal”, acrescentou. Isto faz mais sentido do que as divagações sobre vitórias fantasmagóricas de uma esquerda radical inexistente. A questão está no motivo pelo qual os poderosos hoje sentem essa “culpa”, ao menos nos Estados Unidos. As coisas são muito diferentes na Europa, onde a “culpa” é muito menor.
Tudo isto não deixa de ser, até certo ponto, curioso, porque nesse momento qualquer reunião ou conclave de esquerda costuma abrir espaço para cenas de lamentação catártica e autoflagelações quase monásticas. Muitas vezes, ao clássico discurso da derrota, somam-se as queixas pelo pouco que “é possível” quando as eleições são vencidas.
Os discursos das esquerdas não transmitem, precisamente, a convicção de ter o vento da história nas velas, como no passado. Em geral, predomina a impressão de que as direitas “não convencionais” estão vencendo a batalha pelo senso comum, em um Ocidente outra vez em “decadência” (ainda que estas direitas não acreditem muito que estão vencendo), e de que o capitalismo globalizado é indomesticável (talvez a coisa passe por aí).
A esquerda parece cada vez mais amargurada. Agora, procura extrair do “antifascismo” uma nova épica. Mas se o que vem pela frente não é um nazifascismo do século XXI, mas uma espécie de projeto de “orbanização” [referente a Viktor Orbán] da Europa, junto com a “normalização” da extrema-direita, por onde passa o rearranjo político-ideológico da esquerda? Talvez estejamos em um momento que nem a esquerda e nem a direita compreendem, nem aceitam, o do capitalismo realmente existente, e assistamos um novo tipo de indignação, diferente da de 2011, quando estouraram os ‘indignados’ e foi publicado o panfleto Indignai-vos, do nonagenário Stéphane Hessel.
Em seu livro La sociedad decadente (muito recomendável), o escritor conservador Ross Douthat fala de uma “decadência sustentável”, produto da combinação de grandes riquezas e domínio tecnológico, estagnação econômica, paralisia política, esgotamento cultural e declínio demográfico. Pode ser que haja algo como um “neoliberalismo progressista” (Nancy Fraser) que tensiona os dois lados da fronteira ideológica e gera cruzamentos e “desordem” (nessa equação, alguns rejeitam o neoliberalismo e outros o progressismo), mas esse rótulo parece insuficiente.
O discurso progressista cresce, com efeito, em espaços de elite globalizada, enquanto a desigualdade e a precariedade aumentam. Os que estão na parte de cima enriquecem, às vezes, mais por causa das rendas do que pela inovação, e aqueles que estão na parte de baixo têm dificuldades cada vez maiores de ascender para além de suas posições.
Também é visível uma espécie de hipsterização do progressismo (incluindo as novas identidades LGBTI e parte das ambientalistas) e um distanciamento dos “de baixo”. A rebelião dos “coletes amarelos”, na França, evidenciou muitas dessas tensões, que ressurgiram no crescimento eleitoral de Marine Le Pen e, hoje, uma parte da esquerda está verdadeiramente preocupada em articular a crise do fim do mundo com a do fim do mês (ecologia e justiça social), em alguma variante do ecossocialismo.
Nesse sentido, mais do que diante de uma “reação conservadora”, talvez estejamos diante de uma disputa pelo inconformismo social. É curioso que na última campanha eleitoral, e mesmo depois, surgiram vários artigos e slogans como: “Não, o programa econômico de Marine Le Pen não é social”; “Não, Marine Le Pen não é gay friendly”; “Não, Marine Le Pen não é aliada dos setores populares”; “Não, Marine Le Pen não é feminista"... Não é difícil deixar isto em evidência (ou é?), mas que os críticos de Le Pen tenham que se esforçar para demonstrar já é uma grande vitória ideológica para a extrema-direita desdemonizada. Ninguém escrevia algo assim sobre o pai dela, Jean-Marie Le Pen. Ele era um facho e ponto.
Contudo, Marine (agora, muitas vezes, usa apenas o primeiro nome na campanha) entendeu o jogo e recuperou o slogan usado contra a extrema-direita e, na última campanha, chamou de faire barrage (bloqueio) “outros cinco anos de desolação social e desestruturação nacional” de Emmanuel Macron... Fala também do povo contra a casta e os megarricos. E agora acusa a esquerda, que está se mobilizando em massa nas ruas contra o aumento da idade para a aposentadoria, de ser responsável por essas políticas, por ter pedido o voto para Macron contra ela.
Provisoriamente, podemos desagregar a corrente social que conduz a um crescimento das extremas-direitas – no plano eleitoral, mas sobretudo das sensibilidades – em quatro “tipos ideais” de tendências que se inter-relacionam e por vezes se chocam entre si:
Antiprogressismo: rejeição a um progressismo desqualificado como buenismo e denunciado como hipócrita porque seus promotores supostamente “não vivem como pregam” e buscam cercear as liberdades por meio de novas inquisições (“Não nos deixam dizer nada, comer nada, fazer nada ...”) e, em linhas gerais, “desordena” a sociedade mais do que já está (por exemplo, com a “ideologia de gênero”). Hoje, a elite progressista estaria tornando a vida impossível às “pessoas comuns” e tudo pode ser lido nessa ótica. (Às vezes, é preciso dizer, as formas autoparódicas que o progressismo assume ajudam muito as direitas).
Antiglobalização: o antiglobalismo como reclusão nacional, inclusive em chave étnico-racial e organicista, com os suspeitos de sempre por trás da suposta expansão globalista, com George Soros na liderança. (O movimento progressista alterglobalização quase desapareceu e toda a crítica à globalização neoliberal, em geral, parece vir da direita).
Libertarismo: rejeição ao Estado, defesa da “liberdade”, que se fortaleceu durante a pandemia, “ideologia” das criptomoedas/economia de plataformas, rejeição aos impostos. Tudo isso, temperado com algo de capitalismo heroico randiano, no estilo A revolta de Atlas. (A esquerda, em grande medida, perdeu/cedeu a bandeira da liberdade).
Inconformismo social: rejeição à casta política, questionamentos à precarização da vida social, mas sem o “princípio de esperança”, o que aumenta o ressentimento e seus efeitos, incluindo a 'conspiranoia' (indignação dissociada da ideia de emancipação). O problema, na minha opinião, é onde se fixar para resistir a essas tendências.
E, ligado a isto, um problema de coerência política: o que nós, na esquerda, fazemos com nossos próprios “iliberais”? Hoje, está na moda denunciar o “iliberalismo” e falar dos retrocessos democráticos, mas na América Latina temos autoritários em nossa própria família. Se o problema é a democracia e os direitos humanos, o regime bolivariano na Venezuela – sem falar do nicaraguense, que ultrapassou todos os limites – avançou muito mais do que o regime húngaro de Viktor Orbán na degradação da democracia.
Em 2022, Maduro organizou a Cúpula Internacional contra o Fascismo (para lembrar o vigésimo aniversário do golpe contra Hugo Chávez), de cunho marcadamente pró-Putin. O dirigente comunista chileno Daniel Jadue, derrotado por Boric nas primárias, fez-se presente: de Caracas, elogiou as Forças Armadas bolivarianas e denunciou a violação de direitos humanos... no Chile.
A Nicarágua enviou uma delegação portadora de uma mensagem da “vice-presidente companheira Rosario Murillo”, encabeçada pelo ex-policial Francisco Javier Bautista Lara, que falou de Rubén Darío e Gabriele D'Annunzio, mas não, obviamente, dos presos políticos em seu país. Entre os presos pelo regime de Ortega-Murillo estava a ex-comandante sandinista Dora María Téllez, condenada a oito anos de prisão por “conspiração” por afligir a integridade nacional. Recentemente, os presos políticos foram libertados, exilados e privados da cidadania nicaraguense, assim como outros exilados como o escritor ex-vice-presidente sandinista Sergio Ramírez, a ex-ministra Mónica Baltodano e a escritora Gioconda Belli, todos no exílio.
Evo Morales, por sua vez, fala da Rússia como aliada dos povos, mesmo – ou ainda mais – depois da invasão, felicita calorosamente Putin pelo seu aniversário como grande líder anti-imperialista e não hesitou em condecorar o ditador Teodoro Obiang, da Guiné Equatorial, a quem perguntou “como se ganha com mais de 90% dos votos”, durante uma visita e homenagem na Bolívia (todos sabemos como se ganha com mais de 90%).
O acadêmico espanhol Juan Carlos Monedero, segundo o jornal El Mundo, teria dito em Caracas que, “na Europa, Putin financia as forças de extrema-direita, como Vox, Trump, Le Pen... Mas, na América Latina, a posição da Rússia é favorável ao povo soberano. Estamos em um mundo muito confuso”. É verdade que a estratégia ideológico-comunicativa de Moscou é segmentada (na América Latina seus meios de comunicação falam menos ou nada da guerra contra o Ocidente satânico), mas é uma segmentação de mercados dificilmente associada à defesa dos povos soberanos.
Essas questões poderiam ser rapidamente descartadas, de forma normativa, destacando que estas e aquelas “não são de esquerda”. Mas isso não nos levará muito longe. Em todos os espaços onde interagimos, há diversas posições sobre esses problemas e não falta o nosso próprio “iliberalismo”, se é que o termo é válido para caracterizar retrocessos democráticos.
Adicionalmente, como escreveu a feminista e marxista indiana Kavita Krishnan, o compromisso da esquerda com uma multipolaridade livre de valores apenas fortalece velhos e novos autoritarismos em todo o mundo, como se vê nas reações de justificação diante da invasão russa da Ucrânia.
Possivelmente, das respostas que encontrarmos para essas tensões dependerão parte da eficácia da esquerda em se contrapor – em vez de aprofundar – à “grande desordem” atual. Mas também para sair desse estado de ânimo melancólico e da sensação de que a esquerda é mais passado do que futuro.
Uma versão preliminar deste texto foi publicada na revista CTXT, como carta aos assinantes, em abril de 2022.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Uma grande desordem sob o céu. Artigo de Pablo Stefanoni - Instituto Humanitas Unisinos - IHU